Reforma trabalhista deixará legado de transformações radicais
Quem acompanha o noticiário já ouviu que a reforma trabalhista aprovada em agosto altera mais de cem pontos da Consolidação das Leis do Trabalho – “suprimindo direitos” ou “destravando negócios”, dependendo do lado de quem fala. Necessária, cidadã, protetora, dizem uns sobre a septuagenária CLT. Ultrapassada, onerosa, grilhão, classificam outros. Passados 120 dias da sanção presidencial, em novembro as novas regras começaram a valer. Na economia, seus efeitos podem aparecer rapidamente. Mas, pensando de maneira mais aberta, o que as novas regras deixarão como legado à sociedade brasileira? Como elas mudam a forma de olhar para o trabalhador (e principalmente para o trabalho) nesse momento histórico de mudanças radicais no nosso modo de vida?
Para o sociólogo Ricardo Antunes, professor da Unicamp, as mudanças serão enormes. Ele defende que a reforma é reflexo da forma como a sociedade enxerga o trabalho – como custo, passível de cortes. Mas isso não se trata de invenção brasileira. Esse movimento, afirma Antunes, faz parte de uma onda internacional de desregulamentação do trabalho, que no Brasil pode levar, entre outras coisas, ao que ele chama de “proletarização da classe média”.
Professor convidado da Universidade de Veneza e da Universidade de Sussex, na Inglaterra, Antunes é considerado o maior pesquisador do país em legislação e relações trabalhistas. Seus 13 livros sobre o tema, com destaque para Os Sentidos do Trabalho, Adeus ao Trabalho? e Infoproletários: Degradação Real do Trabalho Virtual, são editados em inglês, francês, espanhol e italiano, cujos exemplares ocupam duas prateleiras em uma estante na sala de sua casa, em Campinas. Nas paredes do escritório ficam cartazes de palestras suas na Europa, Estados Unidos, Índia e China.
Na entrevista a seguir, Antunes ajuda a iluminar não só a reforma trabalhista, tema áspero do qual é impossível sair sem alguns arranhões, mas algo ainda mais fundamental: o trabalho no nosso tempo. “Dizem que a nova legislação é moderna, mas para quem?”, ele pergunta. “Não temos mais sossego nas nossas casas, nas nossas noites, nas nossas vidas, nos nossos domingos, porque o nosso celular nos ata a nossos empregos, a nossos trabalhos, à nossa sobrevivência. Isso é moderno? A inexistência de legislação social protetora do trabalho é do século 18.”
Época NEGÓCIOS A lei trabalhista brasileira era ultrapassada?
RICARDO ANTUNES É natural que uma legislação social tenha de sofrer mudanças com o passar do tempo. Mas as pessoas esquecem que a CLT passou por dezenas de mudanças entre 1943 e 2017, de tal modo que se tornou flexível. A questão essencial é outra, é como a sociedade do nosso tempo trata o trabalho. Esse ato humano, que homens e mulheres desempenham cotidianamente, é um valor ou um custo? Se for um custo, você mete a tesoura em período de crise. Uso a metáfora da sanfona: você abre a sanfona e contrata trabalhadores quando a economia vai bem; aí o mercado retrai e você joga todos eles fora. Veja bem, o trabalho é um valor, tem de ter algum sentido dentro dele. Qual é o sentido do trabalho intermitente, que existirá a partir de agora? É falacioso dizer que essa legislação nova é moderna. Moderna para quem? Termos escravos digitais é moderno? Não temos mais sossego nas nossas casas, nas nossas noites, nas nossas vidas, nos nossos domingos, porque o celular nos ata a nosso emprego, nosso trabalho, nossa sobrevivência. Eu não considero isso modernização. A inexistência de legislação social protetora do trabalho é do século 18.
NEGÓCIOS Para empresários, economistas, gestores, a CLT era onerosa e reduzia a capacidade de contratação das empresas.
ANTUNES O que cria emprego não é a forma de proteger ou não o trabalho. Há uma série de exemplos – Estados Unidos, Espanha, Inglaterra – onde flexibilizaram a legislação social protetora do trabalho e mesmo assim houve índices de desemprego altíssimos. O que levou ao movimento dos Indignados na Espanha poucos anos atrás? Mais de 50% de desemprego entre os jovens de 15 a 23 anos. E é flexível a jornada de trabalho lá. Como é flexível nos Estados Unidos. O que garante o emprego é o movimento da economia. Se o Brasil, amanhã ou depois, voltar a crescer, as empresas vão contratar trabalhadores pela CLT, pela terceirização total ou pelo trabalho intermitente.
NEGÓCIOS Num primeiro momento, com a aprovação da reforma, as empresas vão contratar mais?
ANTUNES Se o movimento da economia permitir, sim. Caso contrário, não. Mas depende da economia e de um movimento externo, do desenho mundial do capitalismo, da divisão social internacional do trabalho, da situação na China, nos Estados Unidos e na Europa. Não é a legislação que emprega ou deixa de empregar. E, no limite, a terceirização desemprega – três terceirizados fazem o trabalho de quatro trabalhadores com carteira assinada.
NEGÓCIOS Por que a terceirização desemprega?
ANTUNES Se você tem um trabalho CLT e é demitido, ainda mais em um período de crise, aceita qualquer coisa por um emprego. Você vai ser terceirizado, recebendo menos do que ganhava e trabalhando mais. Aceita? Claro que sim. Além de tudo, não é verdade que esses terceirizados terão emprego. Na primeira crise eles serão jogados fora, e sem direitos. Há dez anos, o empresariado dizia que era a favor da terceirização da atividade meio para que ele fosse muito bom e especializado na atividade fim. O que mudou? Ele não quer mais ser bom em nada? Se ele quer terceirizar também a atividade fim é que ele não quer produzir. As empresas hoje querem tanta flexibilidade que não precisam ser donas da produção. Basta ser uma marca e terceirizar o resto. A Foxconn monta produtos famosos, mas o nome que aparece nesse produtos é Apple.
NEGÓCIOS A reforma trabalhista brasileira segue um padrão internacional?
ANTUNES Há uma modalidade que já tem mais de 1 milhão de trabalhadores no Reino Unido, se esparrama pelo mundo e agora chega ao Brasil. Chama-se zero-hour contract. O que significa isso? A empresa pega o celular do trabalhador e, se precisar, liga para ele. O trabalhador não é obrigado a atender e a empresa não é obrigada a chamá-lo. É o trabalho intermitente, que eu considero uma praga internacional. Nessa modalidade não há nenhum dever com relação ao trabalho. E o empresário inglês diz que as pessoas trabalham porque querem. Mas elas trabalham porque têm de trabalhar. Um exemplo mundialmente famoso é o Uber. Um milhão e meio de trabalhadores são proprietários dos seus carros, pagam seguros, manutenção do veículo, alimentação, água. Atendem a uma chamada e entre 20% e 25% do que ganham em cada corrida fica para o Uber, uma empresa global que oferece praticamente nada ou muito pouco em troca. No passado, os proprietários compravam os seus trabalhadores, os escravos. Hoje, alugam os trabalhadores que querem e quando querem.
NEGÓCIOS O sr. usou a metáfora da sanfona, de haver mais ou menos desemprego conforme o momento econômico. Mas esse não é um movimento natural?
ANTUNES A legislação tem de justamente amenizar esse movimento, que, sim, é natural, pelo menos sob o capitalismo. A economia cresce, mais emprego, a economia decresce, menos emprego. Agora, como eu faço para impedir que esses desempregados sejam jogados para o mundo da criminalidade? O que eu faço para que eles não se tornem sem renda e parem de consumir? Eis o valor da legislação social protetora do trabalho. A empresa pode estar em um ciclo de decréscimo, mas, se tem lucros da época das vacas gordas, poderia se segurar sem demitir tantos trabalhadores.
NEGÓCIOS Como o sr. imagina o Brasil daqui a 30 anos, agora com nova legislação trabalhista?
ANTUNES Se a gente caminha para uma sociedade do trabalho intermitente, caminha para uma naturalização da miséria. Vamos ter níveis de criminalidade mais intensos. Fiz duas conferências na Índia para falar sobre a precarização do trabalho e o que vi lá me impressionou. Caminhamos para uma “indianização” da tragédia brasileira. Essa nova legislação do trabalho é demolidora. Nos países em que há resistência, esse tipo de projeto não passa. As perspectivas são dramáticas também para o trabalhador qualificado. É um processo que se aproxima de uma proletarização da classe média. No passado, tínhamos o profissional liberal, advogado, médico etc. Isso está desaparecendo. Hoje é comum um jovem médico ter três ou quatro, quando não cinco empregos para ganhar R$ 10 mil por mês. Essa classe média está vendo seus valores sendo corroídos. Se há uma parte dela que enriqueceu, outra parte grande vive a corrosão e as vicissitudes do mercado. A classe média assalariada pode estar no escritório hoje e estar desempregada amanhã. E, aliás, vai poder passar a ser terceirizada.
NEGÓCIOS Qual o pior ponto da reforma trabalhista brasileira?
ANTUNES São dois pontos. Um é o negociado sobre o legislado. Se uma empresa tem 30 trabalhadores e o gestor diz que a crise é profunda e precisa demitir funcionários ou reduzir salários, o que o trabalhador vai preferir? Vamos escolher reduzir os salários, se a legislação permite. Agora, quem me garante que quando a economia começar a crescer a empresa vai voltar ao salário anterior? Você perdeu seu direito. O negociado sobre o legislado deve existir sobre um patamar mínimo. O segundo pior ponto é o trabalho intermitente.
NEGÓCIOS E qual o melhor ponto?
ANTUNES Há aspectos positivos, no irrelevante ou no pouco relevante. Negociar férias não deveria ser um problema. Mas reduzir o tempo de almoço é gravíssimo. Qualquer estudo de ciências da saúde mostra: se o trabalhador almoça em uma hora, ele tem condição de fazer minimamente a digestão. Se almoça em 15 minutos, como na revolução industrial do século 19, ele está se destruindo.
NEGÓCIOS A reforma brasileira fere de morte os sindicatos?
ANTUNES Profundamente, porque demole uma legislação conquistada em cem anos justamente no momento em que os sindicatos estão tentando entender como lidar com essa nova forma de trabalho flexível. E tem outro problema: o sindicalismo brasileiro é muito heterogêneo, tem de tudo, de máfia a sindicalismo autêntico. Eu sou contra o imposto sindical. Esse sistema de imposto sindical compulsório fez com que muitos sindicatos não precisassem ter associados para se manter. Muitos só vivem do imposto sindical. Mas o fim do imposto sindical em uma tacada só vai causar confusão. Seria melhor um período mínimo de adequação para que os sindicatos encontrem uma forma de existir sem o imposto.
NEGÓCIOS Qual foi a reação em outros países que também reformaram suas leis trabalhistas?
ANTUNES Variada. Na Inglaterra, num primeiro momento os sindicatos sofreram muito. Centenas foram sendo enxugados e se juntaram. Em vez de ter vários sindicatos de trabalhadores, um sindicato da indústria automotiva – e alguns se tornaram muito fortes. Na Alemanha, o sindicalismo social democrático é forte, consolidado e eles não abrem mão de algumas vantagens para a classe trabalhadora. Sabe o que fez o Japão para quebrar a força do sindicalismo? Acabou com os sindicatos por ramo de atividade econômica e criou o sindicato por empresa. Tem empresa no Japão com vários sindicatos. Isso enfraqueceu muito o movimento dos trabalhadores.
NEGÓCIOS Por que praticamente não houve reação à reforma no Brasil? Ou pelo menos à falta de debate sobre o tema?
ANTUNES Estamos numa época tensa, de crise profunda. Vivemos um momento de direitização aguda da sociedade no mundo todo. No Brasil, tem relação com o fim do governo do PT, cujo resultado final foi muito desencanto. Além disso, a crise econômica pegou pesado. Se o trabalhador aderir a uma greve, sabe que seu nome pode ir para a lista da próxima demissão. A crise econômica corrói a capacidade de resistência. Fazemos qualquer negócio para não perder o emprego. Num momento de crescimento econômico, seria muito difícil essa reforma passar. Com mil carros para exportar, se o trabalhador diz que vai parar a fábrica, ele tem um poder de barganha maior. Em condições normais, quando a classe trabalhadora apanha, ela tem de se defender. Mas vivemos um cenário internacional destrutivo e um cenário nacional de desencanto e crise econômica profunda. Resistir a tudo isso é muito difícil. O que não significa que não vá acontecer.